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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (“Disregard of Legal Entity”)

A Pessoa Jurídica não se confunde com os sócios que a compõem, e nem se confundem os respectivos patrimônios. Tal regra se insere atualmente dos arts. 596 do CPC e 997 do NCC, dentre outros, sendo, na verdade, proveniente de todo o sistema jurídico-econômico, pois, da Constituição à legislação infraconstitucional, o legislador refere a pessoa jurídica como realidade própria, distinta dos sócios ou associados. De tal modo, adotada forma social que estabeleça limitação de responsabilidade e registrado o contrato social, em princípio não há possibilidade de ataque ao patrimônio dos sócios por débitos societários. A sociedade será a devedora, e não os sócios.

Algumas vezes, entretanto, a lei torna ineficaz essa distinção, para o caso concreto, e admite a responsabilização direta do sócio por condutas que, não fosse a superação, ficariam a cargo exclusivo da sociedade. É a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, trazida ao Brasil por Rubens Requião em 1969.

Deve ser alertado, de antemão, que a Desconsideração, a qual permite o atingir-se o patrimônio dos sócios, diverge da Despersonalização, que extingue a Pessoa Jurídica. No Desconsideração não há tal efeito, além do que o sócio atingido não é excluído da Pessoa Jurídica, mas há apenas uma circunstância casual e episódica.

Há diversas previsões legislativas do instituto no Brasil. Dentre elas: art. 28 do CDC; art. 18 da Lei nº 8884/94; art. 4º da Lei nº 9605/98; art. 50 do NCC. Note-se, contudo, que a previsão do Novo Código Civil não revogou as legislações anteriores, pois se aplica o sistema da especialidade (cf. Enunciado 51 CJF).

A origem da Desconsideração da Personalidade Jurídica remonta aos países da Common Law. Na maioria da doutrina
se reputa a ocorrência do primeiro caso de aplicação da Desconsideração o Caso Salomon x Salomon Co em 1897, na Inglaterra. Ressalte-se, entretanto, que inicialmente a Teoria era utilizada para o combate ao abusa da personalidade jurídica, ou seja, quando a própria criação da Pessoa Jurídica já representava fraude (exemplo comum no Brasil ocorre quando um sócio detém 99,99% das cotas e o outro 0,01%, com a nítida intenção de burlar o impedimento às sociedades unipessoais legalmente imposto).

Alguns críticos recentes, como o Des. Silvio Capanema, por exemplo, argumentam que a Teoria seria totalmente desnecessária, uma vez que, na forma do art. 927 NCC, o administrador ou sócio que agisse em fraude seria responsabilizado diretamente. Assim, a Teoria da Desconsideração seria, na verdade, um empecilho ao lesado, que teria que demandar contra a Pessoa Jurídica para, posteriormente, desconsiderá-la e atingir o fraudador real. Embora reconheça o brilhantismo da idéia, não compartilhamos de tal raciocínio. A nosso ver, quando o administrador ou sócio se utiliza da Pessoa Jurídica para a prática do ato fraudulento quem está, juridicamente, causando o ilícito é a Pessoa Jurídica, dada a sua autonomia, comentada no primeiro parágrafo deste texto. Deste modo, há a necessidade sim de se demandar contra a Pessoa Jurídica, não se podendo falar em responsabilidade direta, sob pena de ignorar toda a autonomia de personalidades, fruto de anos de aprimoramento do próprio sistema capitalista.

Duas classificações de "Teorias" classificação a Desconsideração, a saber:

  1. Teoria Subjetiva X Teoria Objetiva


     

    1. Teoria Subjetiva – a desconsideração da personalidade jurídica exige a demonstração de fraude, elemento subjetivo.
    2. Teoria Objetiva – é dispensável a demonstração de fraude.


       

  2. Teoria Maior X Teoria Menor


     

    1. Teoria Maior – a simples dificuldade do credor em receber o que lhe é devido não autoriza a desconsideração.
    2. Teoria Menor – a simples dificuldade autoriza a desconsideração.

Ocorre que assim dispõe o art. 28 CDC:

"Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(...)

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores."

O que se percebe é que no caput do mencionado dispositivo há a aplicação das Teorias Maior e Subjetiva. No entanto, surpreendentemente, o legislador previu a aplicação das Teorias Menor e Objetiva no §5º da norma. Tal é amplamente criticado pela doutrina, já que a previsão do §5º torna completamente inaplicável o caput do art. 28 CDC. Nesse ponto observam-se dois posicionamentos distintos na doutrina: um primeiro, orientando pela aplicação do §5º sob o argumento da maior proteção ao consumidor; um segundo, prega a aplicação do caput da norma em inobservância do seu §5º, já que a aplicação literal deste levaria a um aniquilamento da autonomia patrimonial nas relações de consumo, ferindo o Princípio da Segurança Jurídica. Argumento que acrescentamos a essa corrente é que o §5º está sendo "superior" à previsão do caput, o que vai de encontro à técnica de hermenêutica (v., por exemplo, Resp. 1066532 STJ, que afirma tal regra de interpretação em questão referente ao serviço militar obrigatório).

Por outro lado, o art. 50 NCC exige desvio de finalidade ou confusão patrimonial para a Desconsideração da Personalidade Jurídica, apontando a doutrina a ocorrência da Teoria Maior. No entanto, quando do início da vigência do Novo Código Civil, a doutrina apontava que o codex teria previsto também a Teoria Subjetiva, já que estaria exigindo a fraude como requisito. No entanto, salientam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, a nosso ver com razão, que o Código Civil de 2002 previu, na verdade, tanto a Teoria Subjetiva ("desvio de finalidade") quanto a Teoria Objetiva, já que a "confusão patrimonial" nem sempre será conseqüência de fraude, podendo ser constatada mediante simples perícia (elemento objetivo), não se exigindo elemento subjetivo como requisito nessa hipótese.

Por fim, deve ser lembrado que outras Teorias são fruto da "Disregard of Legal Entity", a saber:

  1. Teoria da Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica – possibilita a inversão da Disregard, ou seja, atingir-se o patrimônio da Pessoa Jurídica por dívidas pessoais do sócio fraudulento. Exige-se, para tanto, a aplicação das Teorias Subjetiva e Maior. Aplicação bastante comum ocorre quando o sócio, a fim de fraudar o regime comunhão, o fisco ou débitos trabalhistas, por exemplo, transfere seu patrimônio para a sociedade com o intuito do credor ou cônjuge não encontrarem bens à execução ou à pensão, já que todo o montante, ou grande parte, estará camuflada em nome da Pessoa Jurídica.
  2. Teoria da Desconsideração da Personalidade Em Favor da Pessoa Jurídica – ocorre quando a desconsideração, ao invés de prejudicar a Pessoa Jurídica, a beneficia. Um exemplo ocorre quando determinada sociedade, em razão de situação financeira delicada, requer a gratuidade de justiça. Tal benefício, em tese concedido apenas às Pessoas Físicas, será estendido à Pessoa Jurídica. Na verdade, desconsideração a personalidade jurídica de Pessoa Jurídica para equipará-la à Pessoa Física. Outros princípios norteiam o instituto, tais como a Função Social da Empresa, a Preservação da Empresa, etc.
  3. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica Indireta – possibilita a invasão do patrimônio em caso de fraude em holding. Assim, eventual tentativa de "repasse de valores" de uma sociedade para outra da holding com o intuito de fraude pode ser combatido e anulado. Também se aplicam as Teorias Subjetiva e Maior.
  4. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica Em Favor dos Sócios – como o nome explica, desconsidera-se a personalidade da Pessoa Jurídica não para prejudicar a Pessoa Jurídica ou seus sócios, mas para beneficiá-los. Um exemplo ocorre quando uma empresa familiar funciona em na casa da família. Tal bem pode, dependendo das circunstâncias do caso concreto, vir a ser tido como impenhorável, beneficiando a sociedade e os sócios. Julgado semelhante ocorreu recentemente no Resp 35281 STJ, tendo sido tal questão objeto de pergunta na última prova oral do MPERJ.